Falar e escrever “errado”

Revisão de Texto

As pessoas que se dizem detentoras de um Português absoluto, praticamente inatingível, tanto em nível de fala quanto de escrita, estão completamente equivocadas com esse posicionamento. A ciência que estuda a Língua, a Linguística, comprova que o nativo de uma Língua “não comete erro”, especialmente em nível de fala. O que isso significa, Anderson Hander? Significa que a noção de “erro” estaria relacioanda, talvez, a um estrangeiro, àquele que não é membro da comunidade que fala a Língua. Ou seja, em nível de fala, quem faz a Língua de quem fala é quem fala e não a gramática normativa, a gramática normativa é parte da língua sim, mas é, apenas, um aspecto da Língua Portuguesa, obviamente, a mais prestigiada, a que permite que o falante ascenda socialmente, que deve ser utilizada em caso de linguagem formal (e mais relacionada à escrita do que à fala, porque, em nível de fala, praticamente NINGUÉM segue, à risca, normas gramaticais, nem mesmo os Ministros do STF, ao proferirem sentenças judiciais. E por que isso ocorre, Anderson Hander? Porque há aspectos na língua que revelam a subjetividade humana. Ninguém é uma máquina e completamente formal, objetivo. Além disso, os linguistas têm comprovado que, na fala, dependendo do contexto (+ formal ou + informal), existem níveis de formalidade, mas seria, praticamente, impossível atingir, plenamente, a formalidade na fala. Isso ocorre porque a fala está relacionada com o nosso pensamento que é, em virtude de sermos seres humanos, muitas vezes, desorganizado, mal formulado, nós não pensamos ou formulamos o pensamento, gramaticalmente falando, de uma maneira absolutamente lógica (o conhecimento permite melhor organizar esse processo mental, acredito). O pensamento pode até ser bem formulado, mas a essência de o que nos define nos leva a “erros”, especialmente em nível de ortografia (não se espera de um falante escolarizado que este escreva casa com “z”, mas, dependendo do contexto de produção textual, podemos perceber que esse mesmo falante não cometeu um erro, quando, por exemplo, há outra ocorrência no texto em que este escreve casa com “s”*. Acontece que, às vezes, os nossos olhares sobre o texto estão viciados (um filósofo grego, acho que Platão, dizia que o outro vê melhor, ou seja, fica difícil ter consciência sobre nós mesmos, sobre o nosso próprio texto, sobre os nossos próprios “erros”) e isso pode passar despercebido pelos nossos olhos, por isso TODO TEXTO PRECISA SER REVISADO, ATÉ TEXTOS DE REVISORES. E isso não significa um olhar absoluto sobre o texto, certo? Por isso existem várias edições, por exemplo, de um livro.

*Em nível ortográfico, acredito que, na dúvida, as pessoas devem consultar dicionários e devem prezar por uma escrita comprometida com a ortografia adequada (uma ou outra inadequações ortográficas até são compreensíveis, mas um texto cheio de problemas não dá, seja ele produzido por quem for e seja ele redigido conforme qualquer linguagem, seja ela formal ou informal (o que talvez seja aceito, no campo da literatura ou em relação à transcrição de entrevistas, são registros que, por uma questão de ênfase, tentam representar regionalismos, por exemplo).

Muitas inadequações estão relacionadas a essas questões. Vale ressaltar que algumas formulações são estigmatizadas na Língua Portuguesa não porque estão mais certas ou menos erradas, não faz sentido em língua falar em “mais certo” ou “errado”, inclusive porque língua é, também, cultura e, se aceitarmos essa afirmação, poderemos cometer os mesmos erros dos colonizadores do passado, afirmando que existe cultura (e língua ou fala) superior e cultura (e língua ou fala) inferior. O que existe, na verdade, é o estigma social e, no Brasil, a classe média ou alta parece fazer de tudo para manter o abismo entre a classe mais baixa e alta. Por isso existem essas manifestações absurdas sobre a maneira de um grupo que não é escolarizado falar e até mesmo escrever. É o mesmo caso em que uma pessoa elitizada ridiculariza uma outra pessoa pela internet que posta uma foto tomando banho em uma bacia nas redes sociais, em um dia de sol, com uma perede de fundo de reboco. Nesse caso, a pessoa é estigmatizada, e, por isso, é ridicularizada, mas ela faz a mesma coisa que o membro da sociedade que mora em uma área elitizada com piscina, em um dia ensolarado, faz. A diferença é que o rico ganhará curtidas e o pobre, nesse caso, não (ou ganhará somente do grupo ao qual pertence).

A questão é que aquela maneira que o “favelado”, “o pobre”, “o caipira” falam é característica de um grupo que fala daquele jeito. E, às vezes, aquele grupo não teve acesso a um processo formal de escolarizada. Mas a questão é mais contextual do que social. Não se espera que, em um contexto formal, se fale de determinada maneira, então, aquele que não teve acesso à educação, por exemplo, terá mais dificuldade para interagir nesses contextos mais formais. Por outro lado, não faz sentido a pessoa escolarizada exigir que aquele sujeito que não teve acesso à escola fale como um Mestre no contexto de fala e até de escrita que diz respeito ao meio dele, como um Doutor (e nem doutores e mestres falam com todo esse rigor não, viu?). As pessoas escolarizadas precisam “baixar um pouco a crista” para lidar com aqueles que não são como elas, ainda mais em um país como o nosso, o que é, no mínimo, uma questão de bom senso para quem conhece os nosso problemas sociais. Mais uma vez afirmo: quem faz a língua de quem fala é a comunidade que fala e não a gramática.

Vale lembgrar, também, que as ditas normas gramaticais estão presas a um rigor dos séculos passados, a um português muito próximo do português de Portugal, que nós, definitivamente, não falamos hoje. Alguns Linguistas chegam a afirmar que nós falamos outra língua diferente do Português de Portugal, com sintaxe, regência, semântica e outros aspectos que nos diferenciam.

Em nível de escrita, para compreender essa discussão, é importante conhecer o conceito dos chamados gêneros textuais (o gênero é como se fosse, grosso modo, um “texto em um contexto”). Cada gênero exige uma linguagem de acordo com o seu contexto de circulação e público-alvo. Alguns gêneros são mais formais e outros menos formais. Por exemplo, textos de blogue ou conversas de Whatsapp são característicos de linguagem dos gêneros digitais, são mais informais, diferentemente, por exemplo, de gêneros textuais jurídicos ou de gêneros acadêmicos, que exigem, geralmente, linguagem mais formal. O problema é que as pessoas não conseguem diferenciar língua falada de língua escrita formal, especialmente porque na escola não são ensinadas a fazer essa diferenciação.

Eu lecionei durante 10 anos e sempre trouxe essas reflexões para as minhas aulas, mas me foram impostas barreiras por parte da coordenação e do pensamento escolar que não tinha formação e maturidade para compreender essas questões e exigia aulas monótonas, descontextualizadas, de maneira a ensinar, aleatoriamente, regras gramaticais, apenas (e as próprias diretrizes educacionais referente ao ensino de Língua Portuguesa, os chamados Parâmetros Curriculares Nacionais corroboram o meu pensamento, mas a escola brasileira e muitos professores continuam presos a um paradigma “decoreba”, os próprios professores são analfabetos funcionais (é duro dizer isso) e isso reproduz-se em um ciclo sem fim…).

Como Revisor de Texto, posso dizer que as pessoas esperam de mim uma postura, em relação à Lingua Portuguesa, muito messiânica, como se eu fosse salvar os textos delas de todos os “erros”. Elas não aprenderam a escrever formalmente na escola e chegam a atribuir a mim a responsabilidade para com o texto delas, o que é muito perverso. Sempre esclareço para os meus clientes que, como revisor, ofereço contribuições aos textos deles, ou seja, eu não sou um ser absoluto, supremo que tudo sabe, que tudo vê, eu trago olhares a um texto que se revelam no período de tempo que o cliente solicita o serviço. Mas há tantos mal entendidos sobre o que é língua no Brasil… o pior de tudo é que professores insistem em manutencionar esse discurso, continuam insistindo em ensino decoreba de normas gramaticais, não tratam o assunto de uma maneira crítica, reproduzem os mesmos discursos e perpetuam a ignorância desta nação.

Difícil…

Eu tenho muitos posts escritos sobre essas questões, vejam o meu outro site:  andersonhander.wordpress.com

 

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Prescrição linguística

Prescrição versus descrição: a gramática e a linguística

É muito curioso ouvir as pessoas falarem de Língua Portuguesa sem ao menos ter uma visão crítica sobre o assunto. O que também me chama atenção é ouvir o falante de português do Brasil dizer que não saber falar a sua própria língua. Por trás desse discurso, há uma complexa relação com a convenção gramatical, desvalorização da linguística, ou falta de informação sobre essa ciência, banalização da educação brasileira e também o fato de não haver no Brasil, ao meu ver, uma identidade nacional consolidada, ao ponto de os brasileiros afirmarem que não sabem a própria língua, o que justifica o fato de os portugueses terem dito que nós deturpamos a língua de Camões.

Prescrição

Compreender o que é língua envolve análise histórica sobre os estudos linguísticos. Essa reflexão, que é ignorada na escola, é importante para a compreensão sobre a separação entre a gramática e a linguística ao longo dos séculos. Ao se estudar a história da linguística/gramática, pode-se perceber que, antes de a linguística se consolidar como ciência, havia uma interpretação de que existiam línguas inferiores e superiores por parte de alguns gramáticos, essa definição era explícita em vários manuais gramaticais.

Assim como várias áreas, o conhecimento acerca da área da linguagem, ao longo da história do pensamento humano, produziu falácias, preconceitos e interpretações equivocadas. É interessante notar, porém, que não havia uma distinção entre gramática e linguística no período anterior ao surgimento da linguística como ciência. Essa distinção foi acentuada nas últimas décadas, especialmente, por meio da crítica de muitos linguistas aos gramáticos. O problema aumenta em relação ao conceito de erro e de norma. O que é erro? O que é norma? O primeiro não é termo que me parece adequado para falar de língua, especialmente se esta é compreendida em virtude de uma cultura. O segundo também é perigoso, uma vez que existem várias “normas”, mas muitos pensam que existe, apenas, a norma padrão, e ainda confundem norma padrão com normal culta rsrs (diferença entre norma padrão e norma culta). Muitos pensam que só existem normas e regras na linguagem formal. Ora, a fala também segue uma regularidade. Afinal, ninguém estabelece diálogo por meio de um arranjo caótico e aleatório de estruturas linguísticas. Ou seja, existem várias normas e elas dependem do contexto de uso do falante ou do gênero textual.

A gramática possui caráter prescritivo, ou seja, tende à subjetividade de seu analista, o que significa dizer que ela descreve a língua (de uma maneira não muito científica e às vezes questionável) e faz julgamento de valor a respeito dos seus falantes. A problemática disso refere-se ao fato de a gramática perder a sua objetividade (se é que esse termo deve ser empregado aqui) ao manchá-la com o achismo (no sentido de afastamento da racionalidade e da reflexão) de seus cegos seguidores que ignoram a crítica de ciências, como a antropologia, que não estão em busca de generalizações para os padrões culturais antropicos, muito pelo contrário, tendem à alteridade. É nesse momento que o falante de português do Brasil inicia o seu célebre discurso ao negar que ele mesmo não sabe falar português, ao dizer que a sua língua é muito difícil, ou ao dizer que a “ralé”, a “favela” não sabem falar português.

Eu só me pergunto o seguinte: difícil em relação a…? Ese a dita “ralé” ou “favela” não fala Português, ela fala que língua? O problema é que a escola manutencionou, durante anos, esse ensino prescritivo sobre a Língua Portuguesa. O que talvez os gramáticos e todos aqueles indivíduos que carecem de um pensamento crítico não saibam é que quem faz a fala de uma língua é o seu falante, e quem valida essa fala é o grupo de falantes que possuem características culturais comuns, inclusive, porque não há língua sem interação social.

Esse assunto é delicado, especialmente por tratar de uma questão que, para muitos, não está explícita: relações de poder. Se muitos professores, gramáticos e outros insistem em dizer que a gramática deve ser sobreposta à fala, obviamente, o que eles conseguem evidenciar, uma vez que todos falam, é um grande abismo socioeconômico que separa o indivíduo não escolarizado que fala (uma considerada língua inferior) do falante escolarizado que fala (uma língua superior), embora haja um grande distanciamento, em todos os casos, da norma gramatical tradicional, a chamada norma padrão. O mesmo ocorre em relação aos falantes de regiões geográficas menos prestigiadas economicamente no Brasil, como é o caso do nordeste com o ridicularizado falar nordestino. Nesse caso, porém, o estigma recai sobre ricos e pobres. Imagine a seguinte situação: um estudioso viaja para uma tribo indígena para descrever os aspectos culturais desses povos. Ao chegar lá, ele observa que é comum, nessa cultura, as pessoas comerem baratas. O pesquisador, ao contrário, não come baratas e, ao se deparar com tal situação, escreve em seu diário de campo, em nome dos bons costumes e da moral, que a cultura em estudo é “suja e primitiva”. É nesse momento que surge a noção de ERRO. O Que o pesquisador fez, no entanto, foi evidenciar o seu achismo em sua pesquisa: PRESCREVER. Isso é o que ocorre com a análise PRESCRITIVA de muitos GRAMÁTICOS.

Os linguistas, por sua vez, orgulhosos pelo caráter científico que o seu estudo lhes é dado, consideram a gramática tradicional um modelo falho de estudo, incapaz de descrever precisamente a Língua Portuguesa. Para eles, o nativo de uma língua não comete erro. A noção de erro poderia ser aplicada a um estrangeiro em processo de aprendizagem de uma língua estrangeira/segunda língua. Mas não ao nativo de uma língua que FALA essa língua. De acordo com uma corrente linguística chamada: gerativa, o nativo de uma língua possui uma espécie de “gramática” interna, em sua estrutura cognitiva, responsável pelas regras de sua língua falada. É o que eles costumam chamar de: GRAMÁTICA UNIVERSAL (GU). A gramática Universal corresponde à capacidade inata de um falante de qualquer língua falar. Isso explica a competência de um falante para falar qualquer língua ao nascer, em qualquer cultura e também a capacidade de formulação de estruturas diversas em uma língua, ou seja, a criatividade linguística.

Como linguista, embora eu seja revisor de texto e trabalhe com a norma padrão (mas não só com ela), considero que a gramática normativa não consegue explicar a diversidade e real complexidade dos processos de estruturação da Língua Portuguesa. No entanto, acredito que o ensino de gramática normativa é fundamental em nossa sociedade, mas não da maneira pela qual é ensinada: por exemplo ensinar nomenclatura de função sintática). Apesar de a língua ser heterogênea, reflexo de suas variantes, em cada uma das regiões em que se fala o Português do Brasil, é importante que haja uma padronização de sua estrutura, em alguns aspectos da comunicação, especificamente, em relação à linguagem escrita FORMAL. Por outro lado, linguagem falada não equivale à linguagem escrita formal. A escrita formal deve ser baseada na gramática, e ainda assim isso é questionável, pois existem, eu diria, níveis de formalidade, mas nenhum deles tende à plenitude objetiva da desejada norma padrão (quase irrealizável nesse sentido, inclusive porque refere-se a uma concepção absoluta).

A fala e alguns gêneros textuais informais seguem outras normas. Embora a gramática ainda seja muito valorizada, a língua não serve apenas aos poetas e estudiosos. Ela também é utilizada por outras camadas sociais, inclusive as desprestigiadas, por aqueles que não são escolarizados, por exemplo, e se afastam da norma idealizada. E é nesse momento que as aplicações da gramática tradicional tornam-se perigosas. Os gramáticos e muitos professores desinformados exigem que o falante não escolarizado fale conforme a norma padrão. Eles partem da análise prescritiva. Ou seja, eles querem impor a normal gramatical à língua falada de um grupo que muitas vezes nem foi a uma sala de aula, o que é muito perverso.

Você não deve pensar, no entanto, que a gramática é a grande vilã dos não escolarizados, porque ela não é. Se um grupo social não teve acesso à escola e a sua fala é marcada por traços de pessoas não escolarizados, pertencentes a um grupo social específico, falantes talvez pobres; a questão não é meramente estrutural, linguística, porque esse é um problema socioeconômico. E esse grupo deveria aprender a gramática, especialmente porque é por meio dela que ele poderá ascender socialmente. Eu quero dizer que a gramática tradicional é muito valorizada em nossa sociedade. Ela ainda é utilizada em concursos e vestibulares, por exemplo. Em relação à língua falada formal (tão idealizada: pais corrigindo os falares de seus filhos, professores corrigindo a fala de seus alunos), eu diria que é praticamente impossível existir um falante que fale em sincronia com as normas da gramática tradicional. Nem mesmo o indivíduo mais bem escolarizado ou pedante conseguirá ocultar o caráter subjetivo existente em uma língua e ser completamente objetivo e formal.

Quando eu estagiei no Supremo Tribunal Federal – Seção de Padronização e revisão de textos, eu pensei, assim que fui selecionado para a vaga de estagiário revisor, que haveria uma formalidade extrema em relação às práticas sociais e linguísticas nesse local. No entanto, isso não ocorreu. Havia uma formalidade no local e na fala das pessoas ali presentes, mas a subjetividade era inerente a cada uma daquelas pessoas, independente de qualquer cargo jurídico: seres humanos. Eu me lembro de que eu enviei um e-mail para a minha chefe e encerrei o fechamento deste com os dizeres: “Respeitosamente, Anderson Hander”. A minha chefe respondeu esse e-mail com o seguinte fechamento: “Beijos! Fulana de tal”. E não foi apenas ela quem me respondeu e-mails dessa maneira, todos os servidores que eu conhecia respondiam os meus e-mails da mesma maneira. O que me fez pensar que eles queriam tornar aquele ambiente de trabalho um local cordial e acolhedor. Eu pensei que talvez os Ministros estivessem próximos dessa formalidade linguística citada anteriormente, mas eu também me enganei. Eu li, várias vezes, vários acórdãos dos Ministros do STF e essas decisões eram feitas oralmente, porém, um escrivão transcrevia os acordos para o papel, posteriormente, eles eram publicados em uma revista: Revista Trimestral de Jurisprudência. Eu notei, lendo esses acordos, em relação ao purismo gramatical divulgado por ai, que eles eram hibridos, ou seja, o texto não era completamente formal, havia marcas de informalidade em relação à transcrição da oralidade dos ministros.

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