Texto adaptado de Crítica da Razão Tupiniquim, de Roberto Gomes (10 edição, FTD): Uma Razão que se Expressa.
A expressão da Razão é o ponto de partida da Filosofia. Na cultura grega, o que chamamos de Filosofia nada mais é do que o reflexo cultural da Razão grega sobre si mesma. Esse ato aparentemente simples é crucial, pois é nele que a Razão se descobre em sua singularidade e compreende seus desejos mais íntimos, permitindo, assim, a emergência da Filosofia.
Mas o que significa descobrir-se em sua singularidade? Isso nos leva a duas questões fundamentais: o que implica descobrir-se e a natureza dessa originalidade. Contudo, antes disso, devemos considerar as condições dessa descoberta.
Se partirmos do pressuposto de que descobrir-se implica encontrar alguma coisa, imediatamente nos colocamos em oposição a algo que devemos descobrir. No entanto, não há realmente um “outro” que precisamos encontrar para descobrir a nós mesmos. Os encontros com outros são superficiais e externos.
De fato, descobrir-se é encontrar-se consigo mesmo, pois desde o princípio, é o “eu” que está em questão. Esta descoberta é, portanto, um reconhecimento primordial: um re-conhecimento.
Ao nos despirmos de artificialidades que criamos para nos estabelecer na realidade, percebemos que a questão do “ser” permanece. Assim, desde o início, a pergunta sobre quem sou eu remete-se à pergunta: “Onde estou?” Estou num tempo, num lugar, entre coisas e pessoas que me cercam. A consciência é, antes de tudo, este contato com a proximidade, com os contornos que imediatamente me afetam e perturbam. Estar num lugar específico é o ponto de partida para o meu ser. Antes de existir, estou situado.
A Filosofia, onde a Razão se expressa, sempre se destacou pela fidelidade a esta realidade. Subitamente, a Razão se descobre em algum lugar, como ocorreu em Mileto. Por mais abstrato que pareça um pensamento, sempre reflete a marca de seu tempo e localidade. Contrariamente ao que se pensa comumente, não é a desvinculação do tempo e do lugar que confere profundidade a um pensamento, como, por exemplo, o de Platão. Seu grande mérito é ser a expressão concreta do espírito grego em seu momento – pois este homem foi, sem dúvida, um grego.
Não compreenderemos verdadeiramente suas ideias se tentarmos ignorar a conexão íntima com os dilemas de sua época. Sua consciência aguda e altamente diferenciada, intrinsecamente ligada à Razão grega daquele momento, é a raiz de sua profundidade e a essência de sua lição. Seu pensamento se torna incompreensível se desconsiderarmos a conexão íntima existente entre Política e Filosofia, onde esta última é iluminada pela primeira, à medida que reflete sobre ela.
O fracasso político na Sicília, as condições políticas tumultuosas e a morte de Sócrates o levaram ao cerne de seu idealismo: a necessidade de modificar – ou seja, negar – o mundo material com base nas verdades obtidas na intuição das ideias. Desse modo, ao postular a reforma da cidade, o “mundo das ideias” se mostra como o não-ser que nega o status quo, sintetizando sua crítica ao seu tempo. Somente assim, ao ser observado em sua essência intrinsecamente política, seu pensamento faz sentido completo. Fora disso, parecerá uma construção vazia e “platônica”, o que de fato nunca foi.
Tomás de Aquino, por exemplo, enfrentou preconceitos que precisamos considerar com compaixão. Historicamente, o tomismo não surgiu como um sistema intemporal e “sabe-tudo”, mas sim como uma resposta clara a questões urgentes daquela época. Tentar eternizá-lo, colocando-o acima do tempo, é desvalorizá-lo – e assim percebemos que, nesse aspecto, os defensores do tomismo prejudicaram mais do que os críticos mais severos de Tomás de Aquino. Isolar sua síntese do contexto histórico que a gerou a torna anacrônica.
Esses exemplos poderiam se estender, mas o fundamental é compreender que o pensamento só faz sentido dentro das urgências de seu tempo. Fora disso, os pensadores tornam-se incompreensíveis. No entanto, não basta destacar que todo pensamento reflete seu tempo e lugar – isso é aceito por muitos. O essencial é reconhecer que um pensamento é original não por transcender sua posição – o que é impossível -, mas justamente por moldar e dar forma ao seu tempo, oferecendo uma análise crítica das questões de sua época. O pensamento é superior não apesar de situado, mas precisamente porque se situa.
Nesse sentido, embora a Filosofia e até mesmo a ciência busquem ultrapassar espaço e tempo, essa mesma possibilidade de transcendência está enraizada no ato de assumir sua posição específica. Isso significa que a Filosofia brasileira, por exemplo, só alcançará originalidade e existência quando se encontrar de fato no Brasil. Estar no Brasil é o primeiro passo para ser genuinamente brasileira. E isso ainda não ocorreu.
Nosso pensamento tem sido importado do exterior desde sempre. É crucial reconhecer que um problema para um alemão do século XX ou um grego do século V a.C. pode não ser um problema para nós, a menos que o façamos nosso. A chave para a Filosofia está em inverter esta lógica. Não há uma lista fixa de questões pré-determinadas que possamos usar como um roteiro ou índice, presumindo que ao abordá-las estamos automaticamente filosofando. Fazer Filosofia é, precisamente, criar a Filosofia. Isso implica seus temas e sua abordagem.
É crucial verificar se os temas e instrumentos que nos foram legados são relevantes para nós. Somente então estaremos aptos a lidar com eles de maneira séria, tornando-os verdadeiramente nossos. Esta é a condição para que nosso conhecimento seja uma visão a partir de nossa posição – e não uma visão abstrata fora do tempo e do espaço.
Assim, uma Razão só se expressa quando oferece seus temas e sua linguagem, decorrentes da posição em que se encontra. O desafio é romper com toda a construção séria da Filosofia que até agora foi importada para nosso meio. Devemos ter a consciência de que tanto o pensamento quanto seus objetos são invenções. Não existia um “problema” esperando para ser resolvido pela Filosofia grega antes que os gregos o inventassem, assim como a Nona Sinfonia de Beethoven não existia antes de ele criá-la. Da mesma forma, não existe um “problema” para a Razão brasileira esperando para ser resolvido por nós. O desafio é inventá-lo no próprio ato de criar uma Filosofia brasileira – um verdadeiro strip-tease cultural.
Essa invenção, no entanto, não ocorre no vazio. Da mesma forma que filósofos como Tales ou Marcuse não injetaram um problema na consciência de seu tempo, eles trouxeram à reflexão da época questões que precisavam ser abordadas. Não se tratava de elementos latentes à espera de reflexão, mas sim da intuição original que gerou conjuntos específicos de ideias. A história da Filosofia precisa recuperar essas intuições que geraram pensamentos ao longo do tempo.
Portanto, a Filosofia é uma Razão que se expressa, onde a palavra Razão está impregnada de historicidade. Uma Filosofia brasileira só poderá ser genuinamente brasileira quando se descobrir no Brasil. Até hoje, nos apegamos a ideias e pensamentos estrangeiros, sem nos apropriarmos de nossa própria origem. É essencial compreender que um problema para um outro tempo e espaço pode não ser um problema para nós. Só se tornará um problema para nós se o fizermos nosso. Este é o pré-requisito para toda e qualquer Filosofia. Não há um conjunto fixo de questões predefinidas que possamos usar como um roteiro, pois fazer Filosofia é criar a Filosofia. Isso implica lidar com seus temas e sua abordagem.
Urge, portanto, verificar se os temas e instrumentos legados têm relevância para nós. Somente assim poderemos abordá-los com seriedade, tornando-os verdadeiramente nossos. Isso é essencial para que nosso conhecimento seja uma visão a partir de nossa posição – e não uma visão abstrata fora do tempo e do espaço.
A questão fundamental é que uma Filosofia brasileira só pode existir se for criada e questionada no Brasil. Este é o esforço constante da Filosofia desde sempre. Resta saber se, entre nós, encontramos evidências desse esforço. Em resumo e didaticamente: há uma Filosofia brasileira?