Reflexões sobre o termo lacração
Recentemente, uma pesquisadora negra apresentou uma crítica, no Instagram dela, a um grupo com o argumento de que “lacração significa performance que eu não entendi ou não tenho condições de contrapor ou argumento que eu não sei contra-argumentar”, intitulando o post de “termos do dicionário da elite brasileira, e do pobre que não entendeu nada”. Como Linguista, eu penso que, embora o termo seja bastante utilizado para deslegitimar falas de pautas importantes, ele pode e é utilizado em outros sentidos (como menciono neste post a seguir), e pode ser ressignificado. Na verdade, o próprio termo surgiu na comunidade LGBTQI+. Ou seja, não é um termo que necessariamente está vinculado a uma concepção estrita para o uso da esquerda ou da direita. Também penso que, em nossa esfera acadêmica, somos especialistas em nossas próprias áreas. Mas todos gostam de “meter a colher” na área de língua, embora seja uma área inter, trans e multidisciplinar.
A própria pesquisadora afirmou, em um vídeo, que se sentia não confortável em relação à escrita acadêmica, e que assumiu para si, em uma posição libertadora, um estilo “mais solto” em suas produções acadêmicas. Entendo que não são todos que querem se comprometer com a complexidade do conhecimento linguístico, e com as convenções de formalidade (e que existem paradigmas mais subjetivos, que se revelam em uso de primeira pessoa do singular “eu” em textos acadêmicos), às vezes por uma posição propositalmente transgressora (acho válida e reconheço essa posição), mas eu me comprometo, como linguista, com esse conhecimento, e esta é a minha área, da mesma maneira que a pesquisadora se compromete e conhece a área dela (o que, por exemplo, me fez escrever este texto como uma contra-argumentação).
O termo “lacração” tem, de fato, se transformado em um rótulo que frequentemente deslegitima discursos, especialmente de pautas identitárias, como a pesquisadora pontuou. Contudo, a ressignificação é sempre possível, e o significado de um termo varia conforme o contexto e a intenção de quem o utiliza. Há muitas pessoas, especialmente na internet, que querem lacrar com o intuito de, simplesmente, engajamento. E, mesmo tratando de pautas relevantes, posicionam-se superficialmente: “faça o que eu digo, mas não o que eu faço” (tipicamente brasileiro, em uma perspectiva negativa), sendo utilizado mais como um instrumento de visibilidade ou validação nas redes sociais do que como uma contribuição genuína ao debate. É a lógica narcísica de nossa sociedade contemporânea. Qualquer ideia, mesmo que esteja fundamentada em estudos e ciência, é considerada “lacração” se não estiver de acordo com o indivíduo, ou seja, aquele que não se divide. Assim,
O Brasil está profundamente polarizado. A ideia de que o conhecimento ou os discursos precisam se alinhar, exclusivamente, à “esquerda” ou à “direita” é um reflexo desse extremismo, mas a realidade é muito mais rica, tanto em relação à forma (língua) quanto em relação ao conteúdo (a realidade). Reconhecer essas nuances é essencial para compreender que há diferentes formas de abordar os temas e que nem toda crítica (seja ao termo “lacração” ou a outros discursos nas redes) precisa ser vista de maneira polarizada. A língua é, por natureza, dinâmica, viva e está em constante transformação. Tentativas de cristalizar o significado de uma palavra, ignorando seus múltiplos usos, empobrecem o potencial expressivo e criativo da linguagem. A língua não tem intenção nem moralidade própria; são os falantes que carregam os vocábulos com significados, intenções e, às vezes, estigmas. Reflexões sobre o termo lacração
Eu, por exemplo, às vezes, utilizo o termo “lacração” para criticar concepções polarizadas de grupos que não têm muita profundidade de determinados assuntos e os reproduzem de maneira infundada ou inconsciente, porque, simplesmente, aprenderam assim ou por compartilharem desse discurso coletivamente, reproduzindo, muitas vezes, o status quo em nome de uma dita crítica que é contrária a eles mesmos. Alguns, às vezes, preenchem determinadas posições, simplesmente, para se encaixarem na polarização, como senão houvesse uma alternativa a esta ou como se não houvesse dialogismo (seja em relação à direita ou à esquerda). E vou além: quanto de você existe naquilo que você odeia (ui), Brazil? E não acho que o fato de eu dizer ou escrever isso, no contexto deste texto, deslegitime, necessariamente, a esquerda ou me posicione mais para a direita. O conhecimento não é uma moeda de duas facetas. E eu não quero dizer que sou neutro ou “que estou em cima do muro”; ter a consciência para essa interpretação me insere muito além dessa limitação em nosso país.
Vários sociólogos falam em modernidade líquida, pós-modernidade etc. Não penso, como linguista que sou, que devemos colocar vocábulos em caixinhas, embora possam ter uma dita carga pejorativa social, porque a língua, em si, “não tem nada com isso”. Quando fazemos isso, limitamos a língua(gem) e podemos deixar de utilizar os seus recursos para criações diversas. Muito dessa polarização se revela num extremismo líquido contemporâneo que busca modificar o que é sólido (ou moderno); e a solidez é importante em alguma medida, embora também possa nos conduzir a um caminho extremo (e a liquidez, por sua vez, que também é importante, à banalização). Ser sólido em um mundo líquido é importante em alguma medida, não se enganem. E a língua é o meio que pode permitir a criação e a manutenção de sentidos. É por meio dela que transitamos entre os polos ou além deles (de maneira a transcendê-los), que criamos novas significações e que negociamos os limites entre o estável e o transitório ou muito além. Se isso não for observado, poderemos tender à alienação, seja ela individual ou coletiva. Reflexões sobre o termo lacração