Cidadania do jeito: perspectiva discursiva e interacional

Cidadania do jeito: perspectiva discursiva e interacional

Há três situações representativas da realidade brasileira que serão mencionadas neste post. Por meio delas, pretendo lançar questionamentos a respeito das interações na constituição da(s) cidadania(s) do povo brasileiro, em especial, na(s) cidadania(s) do(s) brasiliense(s), em relação ao discurso de cidadania em si, bem como às interações em contextos urbanos.

As experiências a seguir referem-se a observações de interações, no tocante à cidadania, e fundamentaram-se nas minhas reflexões em busca de respostas para o termo cidadania no Brasil.

Como esta reflexão foi elaborada no período em que o Brasil foi elencado para sediar dois grandes eventos interacionais, a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, trago para este texto discussão sobre a apresentação do Brasil no encerramento dos Jogos Olímpicos da Inglaterra[1]. A segunda situação é relativa a momento de interação em fila de um supermercado no centro de Brasília. Por fim, apresento momento de interação vivenciado por mim em transportes públicos na Capital Federal.

A apresentação do Brasil no encerramento dos Jogos Olímpicos, na Inglaterra, iniciou-se com a seguinte encenação: as luzes do estágio apagaram-se e, de repente, havia holofote de luz em um dos atores sociais muito representativo do Brasil, um gari, negro, em seu uniforme alaranjado. O gari invadiu o estádio, descumprindo a norma instituída e, após ser repreendido por um dos seguranças figurinistas, negociou, por meio de sua malandragem, o fundamento de sua própria identidade, um aspecto de sua cidadania internacionalmente conhecida: “a cidadania do jeito”. Nesse sentido, a rigidez do sistema legislativo britânico, fundamentada em outros parâmetros de cidadania, não seria aplicada àquele cidadão brasileiro, pois, como anunciava o evento, a Inglaterra não seria mais o país-sede dos jogos. Por essa razão, a regra instituída fundamentar-se-ia na malandragem.

A cordialidade do brasileiro transbordava na interação com o outro, estrangeiro, que pareceria estar bastante engajado na interação com aquele, demonstrando, inclusive, que possuía, após aparente mal-entendido, também, “samba no pé”. A interação Brasil e Inglaterra naquele momento transformou-se em um rito de passagem em que o encerramento da participação deste país, por meio de sua própria encenação cultural, enquanto país-sede dos Jogos Olímpicos, apresentava ao mundo aspectos culturais do novo país-sede: o Brasil. O engajamento na interação revelou laços entre os países, fortalecidos pelo próprio fundamento dos jogos no mundo globalizado.

Essa apresentação é bastante reveladora sobre a cidadania no Brasil. O paraíso das transgressões iniciou a sua apresentação em um cenário de beleza natural, com o bom selvagem ao fundo, em que recaía apenas sobre o gari — cidadão incompleto[2] — a malandragem. O índio foi apresentado, naquele momento, como não cidadão, apresentado como ser sobrenatural, lendário. O segundo momento do espetáculo revelou-se pela passagem de modelos e artistas famosos, os “cidadãos exemplares”.

De acordo com Holston (2013), em sua obra “Cidadania Insurgente”, sobre disjunções da democracia e da modernidade no Brasil, ao citar a variação do termo cidadania entre os Estados-nações ao longo do tempo, em sua fundação nacional, afirma que a França pode ser descrita como restritivamente igualitária, os Estados Unidos, como restritivamente igualitários e o Brasil, como includentemente desigual. O autor não tem o intuito, no entanto, com o seu estudo comparativo, de interpretar o Brasil como um país exótico ou patológico, mas tornar evidente, a partir da comparação de cada caso, as suas particularidades. Inspirados pela Revolução Francesa e Inglesa, os brasileiros também engajaram-se, segundo ele, nos modelos dos Estados-nações ocidentais. Mas o Brasil, nessa perspectiva, a partir de políticas de inclusão de sua diversidade, formulou cidadania desigual, centrada na concessão de privilégios. É o que ele define como cidadania diferenciada, expressa na máxima brasileira: “para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei”. Nesse sentido, segundo Holston (2013):

Essa formulação de cidadania usa diferenças sociais que não são as bases da incorporação nacional sobretudo diferenças de educação, propriedade, raça, gênero e ocupação — para proporcionar tratamentos diferentes para categorias diferentes de cidadãos. Por isso gera uma gradação de direitos entre eles em que a maioria dos direitos está disponível apenas para tipos específicos de cidadãos e é exercida como privilégio de categorias sociais específicas. […] Esse esquema de cidadania é, em resumo, um mecanismo de distribuição de desigualdade. As cidadanias não criam diretamente as maiorias das diferenças que usam. Elas são, antes, os meios fundamentais pelos quais os Estados-nações reconhecem e administram algumas diferenças como sistematicamente proeminentes ao legitimá-las ou igualá-las para propósitos diversos. Em geral, um regime de cidadania legitima e iguala diferenças ao mesmo tempo, e suas combinações específicas lhe conferem um caráter histórico. As formulações brasileiras igualam as diferenças sociais no que se refere à afiliação nacional, porém legaliza algumas dessas diferenças como bases para distribuir de maneira diferenciada direitos e privilégios entre os cidadãos.

Segundo Holston, muitas categorias de cidadania no Brasil não representam a exclusão dos brasileiros da cidadania, o que ocorre, por outro lado, é a discriminação em função de alguns status de cidadania diferenciados. Isso é facilmente percebido na apresentação brasileira na Inglaterra, em que ostatus de cidadania do gari é desigual, pois a ele recai a culpabilização pela transgressão, embora ela anuncie em si toda a apresentação dos outros atores sociais, posteriormente. Neste “paraíso das transgressões”, criado em um imaginário mitificado pelo europeu, em um período em que se acreditava que havia monstros marinhos nos oceanos e que não havia no mundo terras além do horizonte mar, cujas interações seriam altamente engajadas e passionais, constituir-se-ia uma nação que na visão de Schwarz está algures, além de seu próprio território, seja para um modelo norte-americano ou europeu, o que importa é o não lugar, o desvinculamento de suas raízes, de sua história, o não pensar em sua cultura, “dar um jeito” e ignorar o presente, deixando ao futuro as esperanças da realização de uma forte economia, apesar de esta já estar estabelecida entre as dez potências econômicas mundiais. Restaria ao gari “dar um jeito”, renascer, o embranquecimento, a fuga, o fugere brasilis, o tornar-se artista, a redenção a um messias ou o mito do doutor: medicina, advocacia e engenharia, ou o que lhe garantisse um status que o diferiria dos demais. Nesse sentido, vale ressaltar que as negociações no Brasil, bem como os discursos, em relação ao sentido de cidadania, perpetuam relações assimétricas.

A segunda situação é relativa ao momento de interação em uma fila de um mercado na Asa Norte, bairro de classe média e classe média alta, em Brasília. Presenciei uma mulher interagindo de maneira bastante representativa do brasileiro em relação à sua própria atribuição de sentido do termo cidadania, ou melhor, à sua criatividade para (re)significar a cidadania à brasileira: “a cidadania do jeito”. Ela aguardava, em minha frente, ansiosamente, para ser atendida. Demonstrava estar ansiosa, especialmente, em função de suspiros profundos e movimentação constante com o corpo. Cansou-se de esperar e resolveu “dar um jeito” de ser atendida mais rapidamente, já que ela não atendia os requisitos para a fila preferencial. Então, ela direcionou-se ao caixa ao lado, por talvez acreditar que o atendimento ali não seria tão moroso. No entanto, após alguns minutos, a estratégia que ela utilizou não foi eficaz, e ela resolveu voltar para a fila em que se encontrava, anteriormente. Voltou para a fila, tacitamente, como costumam interagir os atores sociais da “cidadania do jeito”.

A atitude da senhora nessa situação refere-se à metalinguagem do “jeito”. Se na tentativa de “dar um jeito” para algum problema não é eficaz, “dá-se um novo jeito” como se ambos convergissem desesperadamente para a resolução do problema: “custe o que custar”, afinal, “brasileiro não desiste nunca”. As filas no Brasil são um grande problema. A disfunção da burocracia no Brasil acarretou um sistema de atendimento moroso. Para “dar um jeito”, o brasileiro optou pela cidadania diferenciada: filas diferenciadas para clientes diferenciados, alguns outros, “optaram por dar um jeitinho”.

Esse momento de interação é interessante de ser analisado, pois revela um caráter de nossa cidadania que parece tender a garantias de direitos “infinitos”, além disso, criou-se uma regra tácita nas interações, fundamentada na esperteza, capaz de diferenciar mais ainda esses atores sociais. Não é incomum, nesse sentido, ver pessoas com quantidade superior ao permitido nessas filas, por acreditarem estarem com “só um pouquinho a mais”. A essa concessão infinita de cidadanias diferenciadas não percebeu-se que nesta nação o diferente também pode, antagonicamente, apresentar-se desigualmente superior, por exemplo, por sua melhor condição financeira, ou pode revelar-se desigual para impedirem direitos dos outros, como é o caso do discurso de muitos grupos religiosos.

A terceira situação refere-se a momento de interação em meios de transportes públicos em Brasília. Há alguns meses, um motorista impediu-me de entrar em uma das chamadas “zebrinhas”. O motorista alegava que não possuía troco para a nota de dez reais que havia recebido. OEntrei no ônibus e disse que isso não era um problema, pois ele poderia receber o seu troco posteriormente, quando ele fosse descer, insistiu e disse que não sairia do microônibus devido à regra pré-estabelecida indevidamente pelo motorista. O motorista, no entanto, em tom agressivo, não liberou a catraca de passagem dizendo que havia um outro microônibus atrás em direção ao mesmo lugar de destino daquele: Asa Norte, Asa Sul e Aeroporto. Para não contrariar o motorista, entrei no outro microônibus, que também não possuía troco.

Por meio desses exemplos, é fácil compreender a problemática da cidadania no Brasil. Por essa razão sempre tive interesse em refletir sobre o conceito de cidadania dos brasileiros e suas performances. No terceiro caso, é possível compreender a pessoalidade do brasileiro em relação ao seu statuspúblico. Esse é o mesmo caminho que desvirtua o serviço público no Brasil. O problema dessa “pessoalidade” está muito relacionado à política brasileira e também ao exercício da cidadania. Sobre a política, nem a burocracia, como forma de administração pública, “deu um Jeito” na pessoalidade de políticos e funcionários públicos, que estabelecem um uno entre eles e a função pública que executam, ou seja, muitas vezes, eles não exercem função pública, exercem funções para si mesmos e legitimam esse comportamento porque as regras de convivência no Brasil permitem que algumas outras normas não sejam cumpridas para que não se seja antipático e para que haja identificação momentânea entre cada um dos atores sociais e as barreiras socioeconômicas, ainda que temporariamente, sejam desfeitas. Sobre o exercício da cidadania, especialmente em casos que haja identificação entre os atores sociais, o processo de interação faz-se muito próximo e pessoal. Nesse processo, caso haja discordância, apela-se necessariamente para outro ponto de concordância: “Ele é corno, mas é meu amigo, é zé-ruela mas é meu amigo, ele é viado, mas é meu amigo, ele pode ter defeito, mas é meu amigo).”

Se não se encontra essa harmonia, de acordo com Lívia Barbosa (sobre o jeitinho brasileiro), apela-se para outra estratégia: “Você sabe com quem está falando?”. Mas é preciso ter “cacife” para que se diga isso. Muitas vezes, esse excesso de intimidade impede o exercício da cidadania para que se seja cordial. A busca pela malandragem é outro aspecto importante nesse universo subjetivo. Opta-se pela sorte, pela aleatoriedade, pelo “jeito”, porque “pensar enlouquece”, “estudar para quê? estude para passar em um concurso público, pelo menos”. Embora muitos não concordem com essas atitudes pessoais, caso eles não possuam poder, omitem-se passivamente ou são cúmplices da transgressão, o que justifica o comportamento social. Embora haja traços no comportamento humano que podem ser encontrados em qualquer cultura, a peculiaridade do jeitinho brasileiro encontra-se no comportamento individual em excesso, justificado em um contexto no qual as várias vozes têm ”valor”, sejam elas vozes de pessoas preconceituosas, bandidos, corruptos, religiosos, pobres, ricos, crianças, adolescentes, adultos, pessoas em situação de rua…  é o “O samba do crioulo doido”.

Vários outros poderiam ser elencadas para ilustrar as performances de cidadania no Brasil, especialmente em Brasília. São recorrentes reclamações em filas, nos transportes públicos, em paradas de ônibus, no trânsito, na rua, em instituições públicas ou privadas das performances dos cidadãos brasileiros. Essas situações não são discutidas aqui, no entanto, com o fundamento de patologizar a cultura brasileira. Atribui-se no entanto, à falta de investimento em educação de qualidade por parte do Estado e à “cultura do jeito”, seja ele praticado por ricos ou pobres, o seu aspecto negativo em si, grandes barreiras à democracia e à cidadania no Brasil. E isso não deve ser interpretado como uma busca desesperada por um status de cidadania estrangeiro, ele pode ser desenvolvido ao “modo brasileiro”, mas isso não significa a cidadania do caos, do jeito tampouco a gênese da representatividade brasileira na natureza ou na cultura indígena, como propunha a literatura romântica, inclusive porque, as sociedades indígenas, embora não estruturem-se conforme os modelos capitalistas, são baseadas em regras sociais que são cumpridas e estabelecidas pelos seu povo.

[1] Embora o evento tenha sido basicamente “uma encenação”, com figurinistas, atores e cenários fictícios, ideologicamente essa encenação, na verdade, apresentou-se verossímil em relação às nossas interações cotidianas, face a face.

[2][2] Esta definição fundamentou-se na concepção de Carvalho (20), sobre a cidadania no Brasil.

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