Trecho de dissertação de mestrado de Anderson Hander.
Para citar: Xavier, Anderson Hander Brito. Viajar e punir: processos interacionais e discursivos para (des)construção de cidadania(s) na Companhia do Metropolitano do Distrito Federal. Dissertação. Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas. Universidade de Brasília, Brasília, 2015.
Capítulo 2: reflexões sobre cidadania.
2.1 Cidadania: um conceito que trabalha contra si mesmo
Marshall concebe o termo cidadania no sentido de civilização, pois foi influenciado pelos padrões de vida de sua geração. Segundo ele, é possível haver cidadania, na perspectiva do sistema capitalista, pois a desigualdade do sistema de classes sociais pode ser aceitável desde que a igualdade de cidadania seja reconhecida. Haveria, assim, “igualdade humana básica associada com o conceito de participação integral na comunidade, e isso não seria inconsistente com as desigualdades que diferenciam os vários níveis econômicos na sociedade” (MARSHALL, 1967, p. 76).
Marshall afirma que quando pensamos em um homem da classe trabalhadora “pensamos no efeito que seu trabalho produz sobre ele ao invés do efeito que ele produz em seu trabalho” (MARSHALL, 1967, p. 60). Essa afirmação de Marshall afastou-se, de uma visão quantitativa dos padrões de vida em termos de bens consumidos e serviços recebidos rumo a uma avaliação qualitativa, em relação a elementos essenciais em uma cultura. Nessa perspectiva, ele concebeu cidadania como um modo de viver que surgiria em cada ator social, e não como uma imposição.
Kymlicka (1998) define a cidadania proposta por Marshall centralizada na imagem do poder executivo, como cidadania passiva:
Chama-se muitas vezes cidadania “passiva” a esta teoria, pois coloca a ênfase nas regalias passivas e na ausência de deveres cívicos. Apesar de esta teoria ter ajudado a assegurar um grau razoável de segurança, prosperidade e liberdade para a maior parte dos membros das sociedades ocidentais, a maior parte dos pensadores pensam que a aceitação passiva de direitos tem de ser complementada pelo exercício activo de responsabilidades e virtudes. Os pensadores discordam, contudo, sobre que virtudes são as mais importantes e sobre o modo de melhor as promover.
Em contrapartida, os defensores da cidadania ativa defendem proposta de intervenção mínima do Estado. Os críticos a essa concepção de cidadania, segundo Kymlicka (1998):
[…] respondem que cortar as regalias do estado-providência marginaliza ainda mais as classes mais baixas. Além disso, como as feministas sublinham, a conversa aparentemente neutra sobre a “autossuficiência” é muitas vezes uma forma de dizer subterraneamente que os homens devem sustentar financeiramente a família, cabendo à mulher o papel de olhar pela casa, cuidar dos velhos, dos doentes e das crianças. Isto reforça as barreiras à participação plena das mulheres na sociedade.
Há outra definição de cidadania, proposta por Carvalho (2002), que se refere a relações entre o Estado e a nação, pois se desenvolveu em perspectiva histórica, a partir dos chamados Estados-nações. Assim, cidadania configura-se conforme os direitos nacionais; tornar-se cidadão é se sentir parte de uma nação e de um Estado. No entanto, devido à redução do poder dos Estados nas economias globalizadas e à mudança das identidades nacionais existentes, atribuídas à internacionalização do sistema capitalista e à criação de blocos econômicos e políticos oriundos da nova ordem multipolar, os Estados Modernos fundem-se em um grande Estado multinacional (CARVALHO, 2002).
A crítica aos defensores de uma cidadania construída por instituições civis, como a igreja, a escola, as famílias e organizações concentram-se no fato de que essas instituições, embora ensinem a civilidade e a moderação, ao mesmo tempo, corroboram práticas de despotismo “que por exemplo podem reforçar o domínio masculino sobre as mulheres”.
Reis (1996 apud ROBERTS, 1997) ressalta as tensões entre as dicotomias coletivo e individual, nas sociedades democráticas. Essas tensões referem-se ao aspecto mais contraditório da cidadania em si, especialmente na cidade contemporânea, em que as fronteiras entre as esferas públicas e privadas hibridizam-se.
De acordo com Buffon (2013, p. 44):
Nesta sociedade conflituosa e judicializada, não há um projeto de futuro, nem um aprendizado com o passado. Há apenas o “direito individual”, em relação ao qual se tem até um mórbido prazer de dizer que foi violado, como se cada qual fosse credor do bem “felicidade”; enquanto o restante da coletividade estivesse na condição de contumaz devedores.
Esse caráter individualista em relação à exigência de direitos ocorre especialmente devido à resistência aos saberes científicos e à fundamentação em opiniões e achismos distantes de processo de reflexão crítica, o que corrobora a supremacia individual sobre o coletivo e um pensamento que ainda não separou a religião da filosofia, a filosofia das outras áreas de conhecimento, tampouco a religião de seus Estados, como propôs a Revolução Inglesa e Francesa, ou seja; sociedades estagnadas, em parte, a um sistema feudal, em que o termo cidadania, na acepção moderna, possui significado restrito.
Isso também resultou na dificuldade de separação entre opiniões preconceituosas ou que impliquem a desarticulação dos direitos dos outros e direito à liberdade de expressão de um processo que deveria, antes de assumir qualquer ideologia, ser, a priori, filosófico e reflexivo, oferecido por um sistema educacional que ensine a aprender a aprender , ainda que no nível básico de educação, como propõe Marshall (1967, p. 80), afinal, segundo ele: “o direito à liberdade de palavras possui pouca substância se, devido à falta de educação, não se tem nada a dizer que vale a pena ser dito, e nenhum meio de se fazer ouvir se há algo a dizer”.
Para Marshall (1967, p. 73), o direito à educação é um direito de cidadania genuíno, pertencente às garantias sociais:
[…] deveria ser considerado não como o direito da criança frequentar a escola, mas como o direito do cidadão adulto ter sido educado. E nesse ponto, não há nenhum conflito com os direitos civis do modo pelo qual são interpretados numa época de individualismos. Pois os direitos civis se destinam a ser utilizados por pessoas de bom senso que aprenderam a ler e escrever. A educação é um pré-requisito necessário da liberdade civil […] O dever de autoaperfeiçoamento e de autocivilização é, portanto, um dever social e não somente individual porque o bom funcionamento de uma sociedade depende da educação de seus membros. E uma comunidade que exige o cumprimento dessa obrigação começou a ter consciência de que sua cultura é uma unidade orgânica e sua civilização uma herança nacional.
Hoje as diferenças não são mais tratadas como “diferenças”, como elas foram propostas na década de 1970, pelo movimento feminista; elas são banalizadas e equivalem ao discurso ideológico da igualdade (que também é estabelecido por uma má interpretação do termo cidadania e direitos em uma perspectiva homogeneizadora/universal) para justificar o direito que os outros têm de não aceitarem, por exemplo, o Direito do outro, especialmente, no caso do Brasil, que se justifica no seguinte discurso jurídico, do Art. 5º da Constituição Federal: “todos são iguais perante a lei” (BRASIL, 1988). A grande quantidade de voz que é dada aos atores sociais, a valorização da subjetividade e de outras formas de conhecimento transformaram a discussão das minorias em contradição. Enquanto grupos minoritários exigem Direitos, as maiorias exigem o direito de autoafirmação e perpetuação de poder. Ora, se todos são diferentes e, dessa maneira, todos são iguais perante a lei, e os direitos/diferenças são infinitos, não existem mais diferenças, pois elas se esvaziaram na falácia da igualdade.
A figura a seguir (Figura 2) ilustra esse confronto em relação à cidadania:
Figura 2 – Cidadania assimétrica
Fonte: Fabrízzia. Igualdade não significa justiça. Sociologia no Ensino médio.[1]
[1] Disponível em: <http://sociologianoensinopublico.blogspot.com.br/2013/03/igualdade-nao-significa-justica.html >. Acesso em: 08 mar. 2015.
A imagem acima representa dois grupos: (a) igualdade e (b) justiça. Simbolicamente, trago essa imagem a este estudo a fim de explicar a banalização dos direitos hoje no Brasil. Quando as questões de gênero foram intensificadas a partir da década de 1970 (CARVALHO, 2011), elas anunciaram, praticamente, vozes de outros grupos minoritários, mas o objetivo desses grupos desprestigiados não era deslegitimar outros grupos que já possuíam os seus direitos garantidos em relação àqueles. Nessa perspectiva, não há razão para os que já possuem os seus direitos sentirem-se ameaçados pela garantia das minorias e reivindicarem, de maneira banalizada, mais direito e poder, em detrimento da justiça. Na verdade, esse reclame acaba por deslegitimar ainda mais os ditos desiguais e, dessa maneira, por meio do discurso da igualdade, tornar a sociedade mais injusta.
O discurso da igualdade no Brasil camufla, com base no discurso multicultural, a ideologia de grupos dominantes em relação à intenção de impedir a igualdade, para que, diante de qualquer assimetria, utilize-se o discurso de poder: “você sabe com quem está falando?”, afinal, acredita-se que, nesse sentido, no Brasil, seria preciso ter “cacife” para que a cidadania fosse garantida.
O grupo (a) apresenta a falácia da igualdade: a todos é dada voz, para que sejam iguais, mas, na verdade, a igualdade perpetua a desigualdade, o que não representa a justiça. Há falsa igualdade, em função das caixas que sustentam, assimetricamente, os ditos cidadãos. Percebe-se, nessa imagem, que o discurso de igualdade perpetua a diferença. Nesse sentido, hoje, os direitos coletivos sobrepõem-se aos direitos das minorias ou vice-versa, em função, especialmente, dos interesses de grupos majoritários ou do Estado.
Para Will (1998) as minorias e maiorias só podem integrar-se completamente por meio do que Young chama “cidadania diferenciada” (1989). Ou seja, os membros de certos grupos devem ser incorporados à comunidade política não apenas em função de sua individualização, mas também por meio da coletividade, e os seus direitos devem depender em parte ao grau de pertencimento ao grupo, como é o caso dos direitos de cidadania nacionais. Mas, em sociedade tão individualizada e centrada na valorização da subjetividade e de diferenças infinitas que tendem a uma falsa homogeneização, a coletividade e a identidade nacional são dissolvidas, esvaziadas e plásticas.
Na década de 1970, o movimento feminista surge com forte crítica à separação das esferas públicas e privadas nos modelos republicanos e liberais. Essa crítica impulsionou o desenvolvimento de concepções alternativas de cidadania e política. No modelo liberal, há prevalência da esfera privada de interferências externas, o que permite o livre exercício de interesses particulares (DIETZ, 1998, p. 380-381).
Conforme os defensores da alteridade, a cidadania deve definir-se a partir da diferença. Ou seja, deve refletir identidades culturais diversificadas. Assim, os grupos minoritários só podem integrar-se completamente por meio do que Young chama “cidadania diferenciada” (1989). Ou seja, os membros de certos grupos devem ser incorporados na comunidade política não apenas enquanto indivíduos, mas, também, por meio do grupo, e os seus direitos devem depender, em parte, da sua pertença ao grupo. Essa perspectiva de cidadania é conflituosa em relação à concepção tradicional de cidadania, que define cidadãos como aqueles com direitos “iguais à luz da lei”. Assim, a cidadania diferenciada representa para muitos críticos uma contradição, visto que “a cidadania democrática se distingue canonicamente das perspectivas feudais e pré-modernas, que faziam depender o estatuto político das pessoas da sua religião, etnicidade, classe social ou sexo.” (KYMLICKA, 1998).
Além disso, segundo Kymlicka (1998) há grupos que exigem cidadania diferenciada e rejeitam o ideal de integração nacional:
Desejam governar-se a si mesmos, à parte da sociedade em geral. Isto acontece sobretudo com minorias nacionais — isto é, comunidades históricas distintas, que ocupam o mesmo país ou território e que partilham uma linguagem e história distintas. Estes grupos estão nas margens de uma comunidade política mais lata, mas reivindicam o direito a governarem-se a si mesmos em certos aspectos, de modo a assegurar o livre desenvolvimento da sua cultura. O que estas minorias nacionais querem não é, primariamente, uma melhor representação no governo central, mas antes a transferência de poder do governo central para as suas comunidades, muitas vezes através de um tipo qualquer de federalismo ou autonomia local. Em vez de procurarem maior inclusão na sociedade em geral, procuram uma maior autonomia relativamente a ela.
Essa exigência gera conflitos em relação à identificação dos cidadãos, o que fragiliza o Estado e a nação.
De acordo com Roberts (1997, p. 1), cidadania não possui o mesmo significado em todas as culturas:
[…] não existem padrões reconhecidos de cidadania social, no sentido de um corpo de direitos e obrigações, já que estes tendem a refletir os padrões de determinadas sociedades em determinados níveis de desenvolvimento. […] Embora seja possível definir, com pequena margem de discordância, um padrão geral de direitos políticos e civis, não se encontra o mesmo acordo quando se trata, por exemplo, de estabelecer o nível de bem-estar social a ser proporcionado aos cidadãos. Na verdade, conforme observou Dahrendorf (1004), a importância da cidadania social está justamente em sua capacidade de se ampliar e se redefinir à medida que os padrões da sociedade mudam.
Dessa maneira, o termo implica a não representatividade de determinadas nações, especialmente aquelas consideradas subdesenvolvidas ou emergentes ou de países cuja cultura tende a organização política e social subjugada por não seguir os padrões democráticos e morais Pós-Segunda Guerra Mundial, como é o caso de países do oriente médio. Com o final das grandes guerras mundiais, guerra fria e a criação da Organização das nações Unidas, há uma tendência global à democratização dos Estados modernos. O sistema capitalista prevê o fim de práticas protecionistas, o fortalecimento de um Estado multinacional e um status de cidadania de caráter universal, especialmente com a Declaração dos Direitos Humanos (ONU, 1948).
A grande contradição dessa definição é em relação ao fato de essa concepção de cidadania dissolver os Estados nacionais, as identidades nacionais e muitas vezes os aspectos culturais de cada nação, rumo à felicidade e a um desenvolvimento que, de igualitário, não tem nada além da ambivalência inerente ao próprio sistema capitalista.
A cidadania social proporcionada por uma política de bem-estar torna o capitalismo de certa maneira civilizado para que exista juntamente à democracia, o que é uma crítica em relação ao liberalismo, pois gera conflitos a respeito da liberação do mercado para incentivar o desenvolvimento econômico, em relação ao welfare state na Grã-Bretanha entre os fins da década de 70 e 80 (ROBERTS, 1997, p. 38-39), o que implicou:
[…] uma passividade política muito grande que não se importa com a ação de um Estado poderoso que controla a vida de cada um. Uma sociabilidade regida apenas pela preocupação do bem-estar desune os homens, isolando-os uns dos outros e fazendo com que percam a noção do que é comum. Neste sentido, só a liberdade é capaz, uma vez que se torne o princípio reitor da atividade política, de impedir a sociedade de escorregar neste terreno íngreme podendo conduzi-la à tirania. Em vez de desunir os indivíduos, a liberdade os une, em vez de distanciá-los, ela os aproxima.
Link para download e consulta de referências: https://criteriorevisao.com.br/processos-interacionais-e-discursivos/
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