Prescrição linguística

Prescrição versus descrição: a gramática e a linguística

É muito curioso ouvir as pessoas falarem de Língua Portuguesa sem ao menos ter uma visão crítica sobre o assunto. O que também me chama atenção é ouvir o falante de português do Brasil dizer que não saber falar a sua própria língua. Por trás desse discurso, há uma complexa relação com a convenção gramatical, desvalorização da linguística, ou falta de informação sobre essa ciência, banalização da educação brasileira e também o fato de não haver no Brasil, ao meu ver, uma identidade nacional consolidada, ao ponto de os brasileiros afirmarem que não sabem a própria língua, o que justifica o fato de os portugueses terem dito que nós deturpamos a língua de Camões.

Prescrição

Compreender o que é língua envolve análise histórica sobre os estudos linguísticos. Essa reflexão, que é ignorada na escola, é importante para a compreensão sobre a separação entre a gramática e a linguística ao longo dos séculos. Ao se estudar a história da linguística/gramática, pode-se perceber que, antes de a linguística se consolidar como ciência, havia uma interpretação de que existiam línguas inferiores e superiores por parte de alguns gramáticos, essa definição era explícita em vários manuais gramaticais.

Assim como várias áreas, o conhecimento acerca da área da linguagem, ao longo da história do pensamento humano, produziu falácias, preconceitos e interpretações equivocadas. É interessante notar, porém, que não havia uma distinção entre gramática e linguística no período anterior ao surgimento da linguística como ciência. Essa distinção foi acentuada nas últimas décadas, especialmente, por meio da crítica de muitos linguistas aos gramáticos. O problema aumenta em relação ao conceito de erro e de norma. O que é erro? O que é norma? O primeiro não é termo que me parece adequado para falar de língua, especialmente se esta é compreendida em virtude de uma cultura. O segundo também é perigoso, uma vez que existem várias “normas”, mas muitos pensam que existe, apenas, a norma padrão, e ainda confundem norma padrão com normal culta rsrs (diferença entre norma padrão e norma culta). Muitos pensam que só existem normas e regras na linguagem formal. Ora, a fala também segue uma regularidade. Afinal, ninguém estabelece diálogo por meio de um arranjo caótico e aleatório de estruturas linguísticas. Ou seja, existem várias normas e elas dependem do contexto de uso do falante ou do gênero textual.

A gramática possui caráter prescritivo, ou seja, tende à subjetividade de seu analista, o que significa dizer que ela descreve a língua (de uma maneira não muito científica e às vezes questionável) e faz julgamento de valor a respeito dos seus falantes. A problemática disso refere-se ao fato de a gramática perder a sua objetividade (se é que esse termo deve ser empregado aqui) ao manchá-la com o achismo (no sentido de afastamento da racionalidade e da reflexão) de seus cegos seguidores que ignoram a crítica de ciências, como a antropologia, que não estão em busca de generalizações para os padrões culturais antropicos, muito pelo contrário, tendem à alteridade. É nesse momento que o falante de português do Brasil inicia o seu célebre discurso ao negar que ele mesmo não sabe falar português, ao dizer que a sua língua é muito difícil, ou ao dizer que a “ralé”, a “favela” não sabem falar português.

Eu só me pergunto o seguinte: difícil em relação a…? Ese a dita “ralé” ou “favela” não fala Português, ela fala que língua? O problema é que a escola manutencionou, durante anos, esse ensino prescritivo sobre a Língua Portuguesa. O que talvez os gramáticos e todos aqueles indivíduos que carecem de um pensamento crítico não saibam é que quem faz a fala de uma língua é o seu falante, e quem valida essa fala é o grupo de falantes que possuem características culturais comuns, inclusive, porque não há língua sem interação social.

Esse assunto é delicado, especialmente por tratar de uma questão que, para muitos, não está explícita: relações de poder. Se muitos professores, gramáticos e outros insistem em dizer que a gramática deve ser sobreposta à fala, obviamente, o que eles conseguem evidenciar, uma vez que todos falam, é um grande abismo socioeconômico que separa o indivíduo não escolarizado que fala (uma considerada língua inferior) do falante escolarizado que fala (uma língua superior), embora haja um grande distanciamento, em todos os casos, da norma gramatical tradicional, a chamada norma padrão. O mesmo ocorre em relação aos falantes de regiões geográficas menos prestigiadas economicamente no Brasil, como é o caso do nordeste com o ridicularizado falar nordestino. Nesse caso, porém, o estigma recai sobre ricos e pobres. Imagine a seguinte situação: um estudioso viaja para uma tribo indígena para descrever os aspectos culturais desses povos. Ao chegar lá, ele observa que é comum, nessa cultura, as pessoas comerem baratas. O pesquisador, ao contrário, não come baratas e, ao se deparar com tal situação, escreve em seu diário de campo, em nome dos bons costumes e da moral, que a cultura em estudo é “suja e primitiva”. É nesse momento que surge a noção de ERRO. O Que o pesquisador fez, no entanto, foi evidenciar o seu achismo em sua pesquisa: PRESCREVER. Isso é o que ocorre com a análise PRESCRITIVA de muitos GRAMÁTICOS.

Os linguistas, por sua vez, orgulhosos pelo caráter científico que o seu estudo lhes é dado, consideram a gramática tradicional um modelo falho de estudo, incapaz de descrever precisamente a Língua Portuguesa. Para eles, o nativo de uma língua não comete erro. A noção de erro poderia ser aplicada a um estrangeiro em processo de aprendizagem de uma língua estrangeira/segunda língua. Mas não ao nativo de uma língua que FALA essa língua. De acordo com uma corrente linguística chamada: gerativa, o nativo de uma língua possui uma espécie de “gramática” interna, em sua estrutura cognitiva, responsável pelas regras de sua língua falada. É o que eles costumam chamar de: GRAMÁTICA UNIVERSAL (GU). A gramática Universal corresponde à capacidade inata de um falante de qualquer língua falar. Isso explica a competência de um falante para falar qualquer língua ao nascer, em qualquer cultura e também a capacidade de formulação de estruturas diversas em uma língua, ou seja, a criatividade linguística.

Como linguista, embora eu seja revisor de texto e trabalhe com a norma padrão (mas não só com ela), considero que a gramática normativa não consegue explicar a diversidade e real complexidade dos processos de estruturação da Língua Portuguesa. No entanto, acredito que o ensino de gramática normativa é fundamental em nossa sociedade, mas não da maneira pela qual é ensinada: por exemplo ensinar nomenclatura de função sintática). Apesar de a língua ser heterogênea, reflexo de suas variantes, em cada uma das regiões em que se fala o Português do Brasil, é importante que haja uma padronização de sua estrutura, em alguns aspectos da comunicação, especificamente, em relação à linguagem escrita FORMAL. Por outro lado, linguagem falada não equivale à linguagem escrita formal. A escrita formal deve ser baseada na gramática, e ainda assim isso é questionável, pois existem, eu diria, níveis de formalidade, mas nenhum deles tende à plenitude objetiva da desejada norma padrão (quase irrealizável nesse sentido, inclusive porque refere-se a uma concepção absoluta).

A fala e alguns gêneros textuais informais seguem outras normas. Embora a gramática ainda seja muito valorizada, a língua não serve apenas aos poetas e estudiosos. Ela também é utilizada por outras camadas sociais, inclusive as desprestigiadas, por aqueles que não são escolarizados, por exemplo, e se afastam da norma idealizada. E é nesse momento que as aplicações da gramática tradicional tornam-se perigosas. Os gramáticos e muitos professores desinformados exigem que o falante não escolarizado fale conforme a norma padrão. Eles partem da análise prescritiva. Ou seja, eles querem impor a normal gramatical à língua falada de um grupo que muitas vezes nem foi a uma sala de aula, o que é muito perverso.

Você não deve pensar, no entanto, que a gramática é a grande vilã dos não escolarizados, porque ela não é. Se um grupo social não teve acesso à escola e a sua fala é marcada por traços de pessoas não escolarizados, pertencentes a um grupo social específico, falantes talvez pobres; a questão não é meramente estrutural, linguística, porque esse é um problema socioeconômico. E esse grupo deveria aprender a gramática, especialmente porque é por meio dela que ele poderá ascender socialmente. Eu quero dizer que a gramática tradicional é muito valorizada em nossa sociedade. Ela ainda é utilizada em concursos e vestibulares, por exemplo. Em relação à língua falada formal (tão idealizada: pais corrigindo os falares de seus filhos, professores corrigindo a fala de seus alunos), eu diria que é praticamente impossível existir um falante que fale em sincronia com as normas da gramática tradicional. Nem mesmo o indivíduo mais bem escolarizado ou pedante conseguirá ocultar o caráter subjetivo existente em uma língua e ser completamente objetivo e formal.

Quando eu estagiei no Supremo Tribunal Federal – Seção de Padronização e revisão de textos, eu pensei, assim que fui selecionado para a vaga de estagiário revisor, que haveria uma formalidade extrema em relação às práticas sociais e linguísticas nesse local. No entanto, isso não ocorreu. Havia uma formalidade no local e na fala das pessoas ali presentes, mas a subjetividade era inerente a cada uma daquelas pessoas, independente de qualquer cargo jurídico: seres humanos. Eu me lembro de que eu enviei um e-mail para a minha chefe e encerrei o fechamento deste com os dizeres: “Respeitosamente, Anderson Hander”. A minha chefe respondeu esse e-mail com o seguinte fechamento: “Beijos! Fulana de tal”. E não foi apenas ela quem me respondeu e-mails dessa maneira, todos os servidores que eu conhecia respondiam os meus e-mails da mesma maneira. O que me fez pensar que eles queriam tornar aquele ambiente de trabalho um local cordial e acolhedor. Eu pensei que talvez os Ministros estivessem próximos dessa formalidade linguística citada anteriormente, mas eu também me enganei. Eu li, várias vezes, vários acórdãos dos Ministros do STF e essas decisões eram feitas oralmente, porém, um escrivão transcrevia os acordos para o papel, posteriormente, eles eram publicados em uma revista: Revista Trimestral de Jurisprudência. Eu notei, lendo esses acordos, em relação ao purismo gramatical divulgado por ai, que eles eram hibridos, ou seja, o texto não era completamente formal, havia marcas de informalidade em relação à transcrição da oralidade dos ministros.

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