Conturbada relação entre autor e Revisor de Texto

Compartilho com vocês este texto, muito esclarecedor, sobre a relação entre autor e Revisor de Texto, autoria de Matheus Tussi, disponível no site biblio.info.


Vamos falar sobre a intervenção em texto alheio, sobre aquele profissional que tem a audácia de “mexer no meu texto”: o revisor. Figura ainda existente em redações de jornais e escritórios de editoras, mas cada vez mais um profissional autônomo que presta serviço do seu home Office. O revisor de texto, chamemos assim o responsável pelos serviços de preparação de originais, copidesque, revisão gramatical, revisão de tradução etc., tem uma complicada relação com o autor do texto – melhor, o autor é que tem uma relação difícil com o revisor, visto que, no mais das vezes por desconhecimento ou por falta de bom senso das partes, é o autor quem desaba a destratar o profissional aqui e ali.

Isso me lembra um tuíte ainda do início de 2015 que é um exemplo disso. A escritora Clara Averbuck publicou em sua conta do Twitter, em 19.01.15, o seguinte: “meu trauma com revisores cresce a cada texto que me foge das mãos. metem aspas onde não tem, itálico onde não deve, mas que saco”.

O desabafo de Clara gerou muitos apoios: “revisor tem a mania de achar que sabe o que a gente quer dizer” (@tatimrqs); “alguns revisores se apegam mto rigidamente às regras. daí vão revisar literatura dá nisso. a editora precisa saber selecionar” (@__perola_); “revisor deveria ter como primeira regra: jamais modificar sentido de frases que não são suas” (@gaidarjic); “revisor não é dono do texto” (@tomfernandes).

O escritor Cristovão Tezza, no texto “A vingança dos revizores”, publicado na Gazeta do Povo em 2013, já inicia declarando que vem mantendo, ao longo da vida, “uma relação de amor e ódio pelos revisores de texto”.

Mas será mesmo que essa relação tem que ser assim? E por que será?

Tratemos aqui da produção de um livro em uma relação editorial ótima, quando temos um editor atuante, que é conhecedor dos trabalhos textuais e que faz o meio de campo entre autor e profissional do texto. Deixo de lado, neste momento, a autopublicação ou quando o autor trata diretamente com o revisor, seja porque a editora assim possibilita ou porque se trata de um texto a ser publicado em outra plataforma que não a editorial.

Bom, no processo editorial de um livro já na língua em que será publicado, de um modo geral (sabemos que cada editora tem o seu método) o texto vindo do autor cairá nas mãos do editor ou de um assistente editorial. Este fará suas considerações, seus ajustes e remeterá a um profissional para a preparação de texto. Depois da preparação, o texto volta ao editor, que confere e aprova o trabalho, remetendo o texto ao diagramador. Ao final, a publicação passa pela revisão final. Esse processo terá idas e vindas, tantas vezes quanto o editor considerar necessário para a publicação.

Quero destacar os seguintes aspectos do trabalho com texto alheio que considero fulcrais para uma boa publicação:

1) Limites: Em uma preparação de texto, o profissional tem que saber o que fazer no texto. é necessário que fique claro o que a editora espera do trabalho, pois não há um método que funcione sempre. Cada obra merece uma atenção diferente. É ficção ou não ficção? De que área do conhecimento? Os membros dessa área são mais apegados à formalidade (como o direito) ou não (como a comunicação)? No texto, especificamente, as ideias estão confusas? Até que ponto o autor está aberto a intervenções? Esses aspectos devem estar bem acordados com o revisor. Cada obra, portanto, merece uma atenção especial. Não basta, então, o costumeiro “revisa esse livro”, como se o trabalho fosse objetivo e não houvesse questões específicas da obra a serem discutidas;

2) Padrões editoriais: é a editora quem define os casos que merecem itálico e os que merecem aspas. Qualquer palavra estrangeira ficará em itálico, apenas as menos conhecidas ou nenhuma? Haverá restrição ao uso de maiúsculas? A editora terá esses padrões, seja para todas as suas publicações, para aquela série ou mesmo para a obra em específico. Ela poderá buscá-los em algum manual existente ou ter o seu próprio. Portanto, o revisor não sairá adotando padrões sem que haja critérios preestabelecidos;

3) Preferências do autor: ainda assim, o autor terá suas preferências, que serão ou não aceitas na publicação. “Odeio itálicos”, diz o autor, então a editora definirá se realmente não usará itálico em nenhum caso. “Quero escrever País e Estado”, e se decidirá se isso é adequado ou não naquela obra. Essas definições serão passadas ao profissional do texto.

É fato que a relação que a editora mantém com o autor também incide nisso tudo: autores best-sellers ou que já dão uma boa resposta à editora em termos de vendas terão voz mais ativa, assim como aqueles que de alguma forma estão contribuindo no orçamento da publicação; já autores novos talvez tenham que se adaptar um pouco mais ao que for definido nessas questões. Então não vale o clássico: “o Saramago também faz isso”…

Algo que devemos considerar, fundamental em qualquer discussão nesse tema, é que língua é uso, e não imposição de regras. Afora a ortografia, regulada por lei (e ainda sim passível de boas discussões entre dicionaristas, gramáticos e a própria ABL), tudo o mais é opção, bom senso, adequação. E nisso, claro, haverá divergência. Um trabalho de intervenção, portanto, é sempre subjetivo: há muito mais adequação linguística conforme o gênero textual e o veículo pelo qual o texto é transmitido do que uma mera aplicação de “regras de português”, resultando em um grande campo de discricionariedade para o redator.

No mesmo texto de Tezza referido acima, o escritor diz:

Mas a língua é bicho indócil, seja falada ou seja escrita, e o espectro de possibilidades é infinito. Começa da certeza absoluta – a ortografia, como grafar as palavras, uma área definida por lei – até uma grande zona mais cinzenta e esotérica, capaz de provocar discussões metafísicas, no bar e na escola, o que inclui colocação de pronomes (“ele me tinha dito” x “ele tinha me dito”), aspectos de concordância (“ouviu-se as vozes da rua” x “ouviram-se as vozes da rua”) e o gigantesco banhado da regência (“vou no cinema” x “vou ao cinema”. Ou, nesse mesmo texto, lá em cima, “lembro o horror” ou “lembro do horror”? E, falar nisso, “nesse texto” ou “neste”?).

O texto é do autor, claro, sendo este o responsável final pelas escolhas de linguagem. Havendo divergência entre as mudanças/sugestões do revisor e as opções do autor, cabe a decisão à casa editorial, representada pelo editor, não devendo o revisor ser responsabilizado, pois um bom trabalho editorial supõe que cada um faça a sua parte – e não é parte do revisor tomar essas decisões, mas sim marcar as alterações que considera importantes, sugerir mudanças, informar usos.

Se houver algo que o revisor considere muito grave, e que será mantido por decisão editorial, então o profissional pode solicitar que seu nome não conste nos créditos, para não parecer que tais “gravidades” tiveram a sua chancela. O revisor é, portanto, um cúmplice do autor, e não seu algoz. Afinal, um bom produto final, com texto fluente e livre de imprecisões e problemas, é o objetivo de todos, ainda que o mérito acabe sendo sempre do autor, às vezes da editora e nunca, ah, nunca do revisor.

http://biblioo.info/o-autor-e-o-revisor/

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Revisão de Texto como Processo Recursivo

Trago várias reflexões em meu site que desconstroem o senso comum sobre Revisão de Texto no Brasil. Quando afirmo que o texto é um processo, sempre, inacabado, isso tem grande impacto para a prática de Revisão de Textos, mas poucos conseguem refletir sobre esses dizeres, infelizmente, até mesmo alguns revisores.

As pessoas têm, muitas vezes, a visão delas, seja em relação ao conhecimento, à própria vida ou a qualquer outra questão, muito polarizada (ou se espera x ou se espera y). Em relação à Revisão de Texto, para o senso comum, esse ofício constitui uma etapa de um processo cujo objetivo é “salvar o texto de todos os erros” e eu até diria “ressuscitá-lo”, quando este está fadado a outro plano (há casos em que somente o “renascer”, a reescrita, pode dar vida a um novo texto).

A Revisão constitui, em si, uma tarefa dita tão absoluta que o próprio autor atribui ao Revisor as suas obrigações, como se este fosse um messias, salvador. É preciso, no entanto, desconstruir essas concepções equivocadas, para que haja maior eficácia e qualidade em relação ao dito texto final para publicação.

Nesse sentido, gosto de trazer a concepção de Revisão como um processo recursivo, que pode, e deve, ser realizado em qualquer momento. Isso desconstrói a ideia de que o Revisor é o juiz absoluto do texto, aquele que “dá a última sentença” ou mesmo mal entendidos que, erronea e perversamente, atribuem ao Revisor a responsabilidade do autor.

A imagem que trouxe no início deste artigo é bastante esclarecedora sobre o que é recursividade nesse contexto. E isso se deve ao fato de o texto ser produto do pensamento e, portanto, estar, em processo de (des)construção. Mesmo que ocorra publicação (o que esclarece edições posteriores à publicação, em que existe, também, processo de Revisão de Texto), ou que haja uma “dita” Revisão final, ou Revisão para publicação, todo texto, sempre, poderá ser reformulado.

Não quero dizer com isso que as inadequações ortográficas e gramaticais de um texto devem ser naturalizadas, mas que, mesmo que um texto não tenha problemas ortográficos e gramaticais, por exemplo, este, ainda sim, poderá ser reformulado, melhor adequado a determinado gênero textual. E que não é incomum que, ora ou outra, haja alguma inadequação em um texto.

Esses dizeres trazem como implicação (ou deveriam trazer) a compreensão de que é necessário, às vezes, dependendo da qualidade do texto de autores, segunda ou terceira Revisão de Texto e eu até diria processos de edição ou reescrita do texto por parte do autor, especialmente nos casos em que este desenvolve um texto qualquer, sem pensá-lo e o “larga” nas mãos do Revisor.

Recentemente, li um artigo que traz algumas concepções sobre recursividade para o ofício de Revisão de Textos. Achei extremamente pertinente o texto e compartilho parte deles com vocês, para complementar as leituras que trago em meu site.

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Revendo os dizeres sobre Revisão

Em uma perspectiva tradicional, a revisão é vista como uma etapa subsequente à produção escrita, principalmente de alunos, com o objetivo de corrigir o texto e detectar transgressões nas convenções da norma culta. Tal concepção é pautada no senso comum de que revisar resume-se a corrigir ortografia, pontuação, concordância verbal e nominal, de acordo com as normas apontadas em gramáticas, dicionários e manuais, sendo a revisão tratada como uma das etapas de reescritura em que se focalizam os aspectos estruturais do texto.
Porém, há estudos que apontam a revisão como uma atividade recursiva, a qual pode ocorrer em qualquer etapa do processo, deixando de lado a concepção de etapas lineares, conforme mostra Gehrke (1993, p. 121), recorrendo a outros autores, que concebem a revisão como Revisão de textos: da prática à teoria “uma atividade reflexiva e expressiva” (BOIARSKY, 1982); “exercício do pensamento crítico que conduz à descoberta e à redução de entropia” (MARDER et al., 1982); “conjunto de
processos iguais: o processo releitura/revisão” (HALL, 1982); “a revisão na escrita e a leitura crítica são ‘dois processos espelhando-se um no outro’” (FITZGERALD, 1989); “tarefa de ajustar intenções e convenções” (NOLD, 1982); “pragmática da autoavaliação” (BEACH, 1982); “a empatia ou a adoção da perspectiva do outro como o aspecto fundamental da revisão” (SPEAR, 1982); “uma sequência de mudanças na composição” (SOMMERS, 1982); “dissonância entre os planos e os objetivos
estabelecidos para um determinado texto e os planos e objetivos do escritor para a escrita em geral” (HAYES et al., 1985). Essas abordagens reforçam que a revisão consiste em uma atividade de rever e retrabalhar um texto, diferentemente da ideia de linearidade, na qual cada etapa sucede a outra predeterminada. A revisão também é tratada como processo recursivo, no modelo de escritura de Hayes e Flower (1981), sendo constituída por dois outros subprocessos, quais sejam: a leitura e a editoração, podendo a revisão interromper o processo de escritura em qualquer ponto, daí ser associada a um texto em progressão.
Seguindo a mesma abordagem cognitivista desse modelo de escritura, em estudo posterior, Hayes et al. (1987) propõem três subprocessos centrais na atividade de revisão – a definição da tarefa, a avaliação e a estratégia de seleção – os quais influenciam e são influenciados pelos conhecimentos do revisor acerca dos objetivos, critérios e restrições para os textos.
Em relação à definição da tarefa a ser executada, o revisor deve inicialmente especificar se vai revisar pela clareza ou pela elegância, segundo os objetivos do escritor; quais traços do texto vai examinar, se os globais ou os locais; como vai proceder a tarefa de revisar, se em um passo ou em vários. Para os autores, esse subprocesso se constitui na base de todas as outras tarefas de revisão, uma vez que reflete as concepções subjacentes do que Risoleide Rosa Freire de Oliveira significa revisar, quais atividades particulares estão envolvidas nesse processo, além do modo como devem ser gerenciadas.
Na avaliação, subprocesso seguinte, o revisor aplica os objetivos e critérios determinados na definição da tarefa, tendo a leitura um papel fundamental, uma vez que nessa etapa o texto é lido com o objetivo de serem compreendidos, avaliados e definidos problemas. Essa detecção e esse diagnóstico de problemas gerados pela avaliação possibilitam que o revisor selecione estratégias tanto para ignorar esses problemas ou buscar mais informações para esclarecê-los, quanto para modificar o texto, reescrevendo-o.
Segundo os autores, a análise de protocolos verbais de sujeitos engajados no processo de revisão lhes permitiu relacionar habilidades presentes na leitura para avaliar/revisar. Eles observaram que as habilidades de leitura implicadas na revisão são as mesmas de ler para compreender, porém com as exigências adicionais de avaliar e definir problemas. Quanto aos problemas de ortografia e gramática, ambiguidades e referência, lógica e inconsistências factuais e transgressão de esquemas, de estrutura textual, incoerências, desorganização, tom inapropriado, complexidade, Hayes et al. (1987) propõem como soluções nova grafia, construções e interpretações alternativas, novos exemplos e evidências, analogias e elaborações, reorganização, planos alternativos, novo conteúdo e novo tom.
De acordo com esse modelo, o revisor, ao engajar-se na construção da representação interna do texto e da resposta do leitor virtual, pode empregar os três subprocessos propostos, fazendo-os interagir, ou seja, concomitantemente à compreensão do texto ocorrem a avaliação e a definição de problemas, daí por que o comportamento do revisor é diferente daquele do leitor comum, uma vez que o revisor detecta e diagnostica eventuais problemas do texto e procura dar-lhes soluções.
Revisão de textos: da prática à teoria Dahlet (1994) enfoca a revisão de texto como a terceira das operações que compõem a produção escrita, subsequente à planificação e à textualização. Subdivide, por sua vez, as operações de revisão em outras duas: as de “operações de retorno crítico ao texto”, por meio das quais são detectadas as possíveis
incorreções ou violações da norma culta e diagnosticados os fatores geradores de incompreensão, e as de “operações de adequação definitiva”, destinadas a elidir as falhas encontradas. A revisão, como processo de alteração de um texto com o objetivo de melhorá-lo como um todo, detecta dois obstáculos por parte do aluno, de acordo com Dahlet (1994, p. 90): “uma dificuldade cognitiva, a da autoavaliação, e uma dificuldade metodológica, a de considerar tal alteração, seja global seja local”. Para solucionar tais problemas, o autor sugere a redação coletiva e o “conserto” de textos como acompanhamento do retorno crítico do aluno ao seu texto.
Dolz e Pasquier (1995) recomendam uma pausa para revisão-reescrita, decorrido um tempo da escrita da primeira versão, na fase de aprendizagem da escrita de um gênero. Para eles, esse tempo facilita o distanciamento que o aluno necessita para refletir sobre sua própria produção. Além disso, os professores podem desenvolver atividades de ensino e aprendizagem sobre as diferentes dimensões textuais consideradas difíceis naprimeira versão, como pontuação, tempos verbais, organização
do conteúdo temático, entre outras, assim como as técnicas próprias da revisão, discutindo as diferentes possibilidades de apagamento, substituição, deslocamento, em função de critérios de legitimidade e eficácia comunicativa.
Em trabalho posterior, Dolz e Pasquier (1996), ao defenderem métodos indutivos de aprendizagem, em substituição aos tradicionais métodos transmissores frontais, consideram as atividades de revisão e reescrita mais formativas que a simples correção normativa, levando o aluno a adotar uma posturacrítica em relação ao seu próprio texto.
Risoleide Rosa Freire de Oliveira Dentre os poucos estudos desenvolvidos no Brasil referentes à atividade de revisão, embora sem tê-la como foco central, encontram-se os de Serafini (1992), Dellagnelo (1998) e Garcez (1998).

Olveira, Risoleide Rosa Freire de. Revisão de Textos: da prática à teoria. EDUFRN. Natal. 2016.

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